“A desigualdade começa na sala de aula”
“Sem escola pública forte, não há democracia. Nem igualdade enquanto houver muros.”
Escola para quem? A ferida aberta da educação pública no Brasil.
No Brasil, a infância está dividida por muros. De um lado, a escola particular, seletiva, cercada, com mensalidades que funcionam como senha de entrada, vendidas como promessa de sucesso. Do outro, a escola pública, precarizada, estigmatizada, tratada como espaço “dos que não tiveram escolha”. Essa separação, que muitos fingem ser apenas fruto de “opções individuais”, é na verdade um mecanismo coletivo de apartheid escolar.
O filho do rico não encontra o filho do pobre, não divide o recreio, não estuda lado a lado. Esse afastamento produz não apenas diferenças de oportunidade, mas também diferenças de afeto, de reconhecimento e de humanidade.
De fato, a existência das escolas particulares no Brasil está diretamente ligada ao enfraquecimento da escola pública. Não porque elas sejam “o problema em si”, mas porque acabam criando uma lógica de dupla rede: uma para quem pode pagar e outra para quem não pode. Isso gera vários efeitos:
- Desigualdade estrutural: famílias que têm recursos migram para o privado, e isso tira da escola pública uma parte da pressão social e política por qualidade. É como se a elite (e até parte da classe média) deixasse de se importar com a escola comum.
- Financiamento desigual: enquanto o Estado deveria concentrar esforços em fortalecer o sistema público, há renúncias fiscais para colégios privados e uma política que, na prática, mantém os dois mundos paralelos.
- Estigma social: a escola pública vai sendo vista como “a escola dos pobres”, em vez de ser “a escola de todos”.
- Naturalização do abandono: como quem tem poder de pressão e decisão já não está dentro do sistema público, aceita-se com mais facilidade que ele funcione de forma precária.
Esse apartheid educacional não é apenas consequência do acaso ou das escolhas familiares. Ele é sustentado por políticas públicas que permitem e até incentivam a segregação. O Estado, em vez de garantir uma escola pública universal e de qualidade, concede renúncias fiscais a instituições privadas e aceita que o direito à educação seja tratado como mercadoria.
Enquanto isso, o poder público convive com essa desigualdade como se fosse natural. A existência de escolas privadas de alto padrão funciona, na prática, como uma divisão de crianças ricas das crianças pobres.
Quando não crescemos juntos, não aprendemos a nos reconhecer como iguais. A escola particular, murada e seletiva, ensina desde cedo que há os que “podem mais” e os que “têm menos”. A escola pública, precarizada e estigmatizada, vai carregando o peso da exclusão. O resultado é uma sociedade adulta que naturaliza a desigualdade e perpetua o preconceito contra os pobres.
Esse apartheid não é só educacional — é cultural, político e afetivo. É ele que faz com que o filho da elite olhe para o filho do trabalhador como “outro”, como alguém distante, alguém com quem não precisa compartilhar o mundo. É ele que mantém viva a ideia de que há “gente de primeira” e “gente de segunda”.
Quando as crianças não crescem juntas, não aprendem a se reconhecer como iguais. O recreio que não é compartilhado vira distância social. O caderno que não é dividido vira abismo cultural. A sala de aula que nunca é comum vira semente de preconceito. Assim, a desigualdade não nasce na vida adulta — ela é cultivada desde a infância.
E o mais doloroso: esse sistema não é acidente, é projeto. Um país que permite a segregação das crianças já garante, de antemão, a perpetuação do preconceito contra os pobres. O apartheid escolar é o alicerce invisível de uma sociedade que se divide em classes sociais.
E quando as crianças crescem separadas, a sociedade adulta cresce desigual.
Não é à toa que o preconceito contra os pobres se perpetua.
Não é à toa que naturalizamos a ideia de que alguns merecem mais e outros menos.
O apartheid escolar fabrica, todos os dias, a segregação que chamamos de “normalidade”.
E isso é muito diferente do que acontece em países como Finlândia, Cuba ou mesmo França, em que a escola pública é universal, de qualidade, e até quem tem condições prefere que os filhos estudem nela.
No Brasil, enquanto existirem duas escolas, existirão duas infâncias. Uma de privilégios, outra de resistências. Uma com futuro escrito em oportunidades, outra com futuro disputado no improviso.
E o mais perverso: isso não é fruto do acaso. É um projeto. Um sistema que permite a segregação na infância já está garantindo a manutenção da desigualdade na vida adulta. Quem estuda junto aprende a conviver, a respeitar, a entender que as diferenças existem, mas não justificam privilégios. Quem cresce separado, cresce reforçando muros.
É hora de romper o silêncio.
É hora de dizer em voz alta: não há democracia verdadeira enquanto houver apartheid escolar.
Queremos a escola pública forte, gratuita, laica, inclusiva e de qualidade. Queremos a infância lado a lado, dividindo mesa, sonho e aprendizado. Queremos que cada criança, de qualquer bairro, encontre na escola não a marca da exclusão, mas o território da igualdade.
Porque aprender junto é o primeiro passo para viver junto.
E um país que separa suas crianças, nunca poderá ser inteiro.
Por isso, refletir sobre a existência das escolas particulares é tocar no nervo exposto da nossa democracia. Se a escola pública não for pensada como o lugar de todos, continuará sendo tratada como o lugar de ninguém.
E talvez a pergunta mais incômoda que precisamos fazer seja:
👉 Enquanto existirem duas escolas, será possível sonhar com igualdade de fato?
👉 Falar sobre apartheid escolar é denunciar que a desigualdade não começa no mercado de trabalho, mas dentro da sala de aula — ou melhor, nas salas de aula separadas.